Toshihiko Egashira relembra os bastidores dos heróis japoneses no Brasil

Toshihiko Egashira durante palestra no último domingo
(foto: Daniel Ramos)

Esta vai para os mais saudosistas, que tiveram a infância embalada por produções exibidas na extinta TV Manchete.
No último domingo (30/04), estive presente na Associação Cultural Mie Kenjin do Brasil, para acompanhar a palestra do empresário Toshihiko Egashira, também conhecido como Toshi.
Egashira foi proprietário da distribuidora Everest Vídeo (que posteriormente mudou o nome para Tikara Filmes), responsável pela explosão de popularidade e consumo de produções japonesas no Brasil no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, em especial os super-heróis (também conhecidos como Tokusatsu ou Live-Action).
Este evento foi organizado pela ABRADEMI - Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações, encabeçada pelo casal Francisco Noriyuki Sato e Cristiane Sato.

Em um auditório ocupado por um bom público, o sr. Toshi relembrou momentos da sua vida pessoal e também de toda a sua empreitada com os super-heróis - destaque para Jaspion e Changeman, que fizeram um grande sucesso por aqui.
Nascido em 1957, Toshi é filho de imigrantes japoneses que vieram para o Brasil quando ele ainda era pequeno. Mostrando em slides alguns momentos de sua vida, disse o quanto a sua família passou por dificuldades, uma vez que seus pais eram pequenos comerciantes - o que o levou a começar a trabalhar aos 15 anos.
Cursou administração de empresas e, posteriormente, ganhou uma bolsa de estudos para fazer intercâmbio no Japão, durante o começo dos anos 1980. Uma vez regressando à terra do sol nascente, teve contato com uma nova tecnologia que dominava a mente dos japoneses na época: o videocassete, com o qual era possível ver fitas VHS alugadas ou gravar diversos programas diretamente da transmissão de TV.
Ao voltar para o Brasil, alimentou a ideia de trabalhar com este mercado, e assim abriu uma pequena locadora no bairro da Liberdade, chamada Golden Fox. De começo precário e pouca disponibilidade de títulos, o acervo da locadora pulou para mais de 300 fitas, entre filmes, seriados, desenhos, novelas e programas japoneses diversos, para consumo da colônia japonesa e também de brasileiros residentes no bairro oriental.

O empresário Toshihiko Egashira
(foto: Daniel Ramos)

De acordo com o próprio Toshi, um gênero que tinha muita saída eram as fitas de super-heróis. Nesse meio tempo, ele teve que regularizar sua situação, já que ainda não havia um controle por parte da Receita Federal sobre o material pirata distribuído no Brasil, mas assim que as primeiras distribuidoras começaram a surgir, ele partiu para a legalidade, fundando a Everest Vídeo do Brasil.
Ele tomou essa decisão motivado por um amigo, que além de cliente, era diretor do SBT (ele não citou nomes, mas desconfia-se que seja Salatiel Lage, o responsável por convencer Sílvio Santos a exibir os episódios de Chaves na TV), que acreditava no potencial dos heróis coloridos e suas situações mirabolantes.
No começo, a empresa se dedicava mais à distribuição de home-vídeo, incluindo alguns filmes japoneses e algumas subproduções nacionais da boca-do-lixo (provavelmente atendendo a uma exigência da Embrafilme na época, onde as distribuidoras deveriam ter uma certa porcentagem de filmes nacionais em seu catálogo).
Movido por esse ímpeto e tendo insucesso em realizar algumas parcerias, ele foi com a cara e a coragem ao Japão negociar algumas produções com a Toei Company, grande produtora japonesa de cinema e televisão.
Lá, ele foi bem recepcionado e os japoneses ficaram surpresos ao ver um interessado da América Latina em suas produções, e fechou negócio para lançar em vídeo alguns episódios de dois seriados recém-encerrados na TV japonesa: Jaspion e Changeman. Aproveitou também para trazer o anime Tokusou Kihei Dorvack, que no Brasil recebeu o título de Comando Triplo Dolbuck.

Jaspion: estouro de audiência no Brasil nos anos 1980
(foto: Divulgação)

Depois de trazer todo o material referente aos seriados (fitas master, fitas M&E, material promocional) o produto foi apresentado à sua equipe de vendas, que acreditou mais no desenho por ter uma característica que remetia a um dos sucessos da televisão em 1986: Transformers. Tanto que, no início, Dolbuck vendia até 3000 cópias/mês, enquanto Jaspion e Changeman ficavam em torno de 200/300 cópias.
Mas, em um determinado momento, a situação se inverteu, e os heróis passaram a vender muito mais que o anime (tanto que faltaram 10 episódios para Dolbuck ser concluído por aqui). Isso levou o sr. Egashira a uma nova visita à Toei, para licenciar o restante dos episódios e tentar a venda de direitos dos seriados para a TV brasileira.

Para isso, bateu de porta em porta nas principais emissoras do país. Primeiro arriscou a Bandeirantes, que a princípio se interessou mas não fechou negócio, pois ofereceu um valor bem abaixo do solicitado. Depois tentou o SBT devido ao seu amigo que trabalhava por lá - no entanto, nem essa ajuda foi suficiente. Com a Globo, ouviu um não por telefone. E a Record já era uma emissora com uma situação financeira precária (posteriormente, foi adquirida por Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus), então, nem foi cogitada.
A TV Gazeta tinha alcance muito limitado (apenas para o Estado de São Paulo) e a Cultura era cercada apenas de programação educativa. Restou, então, a Rede Manchete, que não podia oferecer muito dinheiro, mas acabou fechando o acordo em regime de permuta: o espaço para exibição dos episódios era 30 minutos, sendo 23 minutos dos episódios mais 7 minutos de propaganda. Essa publicidade era rachada meio a meio entre a Everest e a emissora.
Não conseguia muita audiência no começo, mas aos poucos a molecada foi tomando conhecimento daqueles heróis diferentes de tudo que se conhecia até então, gerando uma verdadeira febre que se reverteria em lucro.

Changeman: trazendo o conceito de super-esquadrão
(foto: Divulgação)

A partir daí, começou a briga pelo licenciamento de produtos (brinquedos, lancheiras, roupas, produtos para festas, entre outros) onde mais uma vez encontrou certa resistência em convencer fabricantes. Um deles, que produzia máscaras, começou fabricando um pequeno lote (100 máscaras de cada personagem), que se esgotou em 3 dias. Depois, foram pedidas 1000 máscaras de cada personagem, que também se esgotaram rapidamente.
Quando o pedido aumentou para 10 mil máscaras de cada personagem, o fabricante acabou desistindo, pois não dava mais conta da demanda. Isso levou à criação de sua própria fábrica, a Everest Brinquedos, somente para dar conta da fabricação de máscaras e kits contendo a espada e escudo dos robôs.
Em outro momento, procurou outros fabricantes para viabilizar o lançamento de brinquedos relacionados aos personagens, sendo um deles a Glasslite (indústria de brinquedos muito conhecida na década de 1980 por lançar material de diversas séries e desenhos da época, como Esquadrão Classe A, Super Máquina e Thundercats, por exemplo).
Ao apresentar o projeto dos brinquedos, o responsável pela empresa (que também era japonês) disse desconhecer totalmente o sucesso das séries. Mas por sorte, o sobrinho do proprietário da Glasslite estava no local e relatou ao tio a febre que os personagens eram entre a molecada. Dito e feito, em pouco tempo sairia a linha de brinquedos do Jaspion, reaproveitando diversos moldes de brinquedos anteriores, mudando apenas as cores e os adesivos decorativos.
Esta tática era muito utilizada pela Glasslite, uma vez que a economia brasileira era muito instável devido às mudanças de moeda e também envolvia a proibição de importações, que só foi abolida em 1990 durante o governo Collor.

Por fim, outra jogada que auxiliou no sucesso das séries foi a montagem do show ao vivo Jaspion/Changeman, realizado no palácio das convenções no Anhembi, que obteve um ótimo público graças à divulgação na TV. Para a montagem do espetáculo foi necessário importar as fantasias dos seriados, mas somente algumas roupas vieram. Roupas de soldados e monstros tiveram que ser desenvolvidas no Brasil.
Os responsáveis por ajudar na montagem desse show foram os dubladores Nelson Machado e Mauro Eduardo, que tinham uma empresa de montagem teatral e aceitaram o desafio. Com este sucesso, foi pedido ao sr. Toshi para que se desse continuidade a este show, mas em um formato menos custoso e apresentações em circo.
Boa parte das apresentações foi realizada em São Paulo, mas outras capitais e cidades do interior tiveram o prazer de conhecer a atração infantil mais comentada daquele final de década. E não era fácil, pois o próprio sr. Egashira tinha que cuidar da administração da empresa e viajar junto com o circo-show nas apresentações mais distantes, para coordenar tudo. Em alguns casos teve que atuar como bilheteiro e até mesmo usar fantasias dos monstros.

Com o sucesso estabelecido, era a hora de trazer novidades, tais como o seriado Flashman, que seguia a linha de Changeman (somente anos depois os fãs brasileiros ficaram sabendo que era uma franquia chamada Super Sentai), mas com uma história mais dramática.
Com todos os contratos já estabelecidos, foi um lançamento que não enfrentou muitos problemas. Talvez o maior problema tenha sido o alfandegário, já que tinha que ser detalhado tudo que estava sendo trazido ao país.
Observando todo o sucesso destas produções entre o público brasileiro, não demorou muito para outras empresas se interessarem em trazer mais seriados para o Brasil. Aqui vale lembrar que a Everest Vídeo não era uma empresa que detinha exclusividade na aquisição das séries, mas era tratada como prioritária pelo departamento de vendas da Toei quando queria negociar algum produto novo.
O resultado desse apetite dos concorrentes pelas séries foi a saturação de títulos, sem qualquer controle sobre o que fosse lançado. Todas as emissoras queriam exibir um herói japonês, chegando ao ponto de ter quase 20 seriados nas emissoras entre 1990 e 1991 (10 na Manchete, 4 na Band, 3 na Globo e 1 no SBT). O resultado disso foi o crescente desinteresse do público, que ia se afastando do gênero.

Flashman: repetindo o sucesso de Changeman
(foto: Divulgação)

No entanto o sr. Egashira quis continuar com a distribuição de produções japonesas no Brasil. Para isso acabou vendendo a Everest Brinquedos e mudou o nome de sua distribuidora para Tikara Filmes. Nesta época ele já tinha adquirido os direitos de um seriado que seria lançado algum tempo depois: Patrine. Foi uma aposta para sair um pouco dos heróis convencionais e apresentar uma heroína enfrentando vilões bem diferentes dos monstros e alienígenas que as crianças haviam se acostumado a ver.
Essa licença foi adquirida em 1990, mas Patrine só apareceu na TV em 1994, juntamente com a série Winspector. Ambos tiveram seus episódios lançados em VHS, mas somente a segunda seguiu até o final, além de uma ter uma linha de brinquedos lançada pela Glasslite.
Um ano depois veio a última investida nos super-heróis, com Solbrain (sequência direta de Winspector) e Kamen Rider Black RX (continuação de Kamen Rider Black, que por aqui ficou conhecido como Black Kamen Rider ou Black Man), numa época onde a coqueluche da garotada já era o anime Cavaleiros do Zodíaco (Saint Seiya), além da adaptação norte-americana do gênero Super Sentai, Power Rangers.
Ele também citou o caso da série VR Troopers, que era trucagem com os episódios de Metalder e Spielvan (as quais a Everest distribuiu no começo dos anos 1990): por recomendação da Toei, ele revendeu os direitos das duas primeiras séries para a Saban, um negócio que para ele compensou financeiramente. Mas ele só repassou a licença, pois as masters dubladas continuam com ele. Já em relação a Kamen Rider Black RX (que nos EUA ganhou a tenebrosa adaptação Masked Rider) houve uma divisão de licenças: enquanto a Tikara ficava com RX na TV aberta, a Fox lançaria o Masked Rider na TV a cabo. Por causa disso, a Globo jamais exibiu o gafanhoto americanizado.

A partir daí, embora estivesse negociando outro seriado para exibição no Brasil (Tokusou Robo Janperson) acabou embarcando no sucesso de Cavaleiros e trazendo em 1996 uma das séries concorrentes: Shurato, que teve um bom retorno de audiência e alguns brinquedos lançados pela velha parceira Glasslite.
No ano seguinte, ocorreu sua última e maior investida: o anime Yu Yu Hakusho, já conhecido por alguns fãs através das revistinhas informativas da época (Herói, Heróis do Futuro, Animax, Animação) e alguns jogos de videogame. Este anime fez um grande sucesso de audiência, mas no entanto, não arrecadou com a venda de produtos relacionados.
Sua última tentativa de licenciar uma série foi com Ranma ½ (que veio posteriormente por outra empresa), que acabou não estreando diante do sucesso de Dragon Ball Z na Band e assim levando a Tikara Filmes a encerrar suas atividades.
Atualmente, o sr. Toshi vive em Araçariguama, no interior de São Paulo, onde conduz uma empresa de administração de bens - após deixar a indústria do entretenimento, teve empresas em outros setores, como logística, por exemplo.

Durante a palestra, o sr. Toshi também apresentou ao público alguns materiais raros, que ainda estão sob a sua posse, como algumas fitas master de seriados como Changeman e Kamen Rider Black RX, cujas cópias eram utilizadas pelas emissoras para exibição na TV, e até um LD (Laser-Disc, o "pai" do DVD) de Yu Yu Hakusho, além de algumas fitas VHS e material promocional da época.

Uma das masters de Kamen Rider Black RX: raridade do sr. Toshi
(foto: Daniel Ramos)

Ao final, foi realizado um pocket-show com o cantor Diogo Miyahara, ex-vocalista da banda Animadness, que apresentou covers das canções dos seriados trazidos pelo sr. Toshi.
O show contou ainda com a participação de cosplayers caracterizados como personagens das séries.

O cantor Diogo Miyahara ao lado de um cosplayer caracterizado
como Kamen Rider (foto: Daniel Ramos)

O sr. Toshi foi o grande responsável por toda uma geração de fãs que acompanhou essas séries. E ele tem um sentimento muito forte a respeito disso: "É uma honra ver esse público que naquela época tinha entre 5 e 10 anos hoje todos crescidos, barbados, bem-sucedidos... Fico muito feliz em saber que fiz parte da história dessa geração. Tenho muita saudade dessa época, e estou revivendo tudo isso agora", disse o sr. Toshi ao Em Foco.

Uma iniciativa ousada, empreendedora, em uma época onde o Brasil vivia uma grande instabilidade econômica e política - um momento de transição entre o regime militar (1964-1985) e a democracia, com uma inflação altíssima e uma moeda instável.
Quem viveu aquela época sabe muito bem - no entanto, a garotada daquela época estava muito bem servida, com todas essas séries bacanas que passaram por aqui.
O sr. Toshi é um exemplo de perseverança e de determinação, que demonstra que, com força de vontade, tudo é possível.

(foto: Daniel Ramos)

(Colaboração: Silas Ferreira "Aniki")

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